Oceano raso
Eu sempre demoro a tirar nossas coisas do café da manhã.
Amo estar só, mas adoro a sensação que me invade quando chego em casa
E é quase noite, mas duas xícaras sujas de café repousam em cima da mesa da cozinha
Tenho a impressão de que quando eu ligo a luz elas congelam num susto.
Quase como se fossem flagradas conversando, rindo de alguma coisa.
Como a gente geralmente faz, ali sentados a mesa, como se tivéssemos todo tempo do mundo.
Eu tenho uma rotina intensa e meio absurda as vezes. Mas nunca quando você vem.
Pra você eu sou inteira tempo livre e tranquilidade.
Nem é que eu simule isso mas na verdade não seja, é que eu sou mesmo uma amante disponível.
Eu sou uma mulher fácil.
Não me proponho a jogos, coisas não ditas, mistérios, segredos… dizem que eu sou o exato tipo de mulher que não interessa a pessoas como você. Na teoria você gosta do turvo, do não dito, do oculto.
Eu não tenho mistério, eu troco as roupas de cama antes de você chegar, e não uso seu travesseiro pra não misturar os cheiros.
Eu não tiro sua toalha do banheiro.
Não simulo dificuldades . Já tenho o suficiente delas, e todas bem reais, pelo menos pra mim.
Não finjo doçura, nem dureza.
Perdoo ingerências, inobservâncias, distrações e inconveniências, relevo, tento não arrancar palavras de você, mas pergunto tudo que quero saber. Na mesma medida respondo tudo que for perguntado.
Eu sou oceano raso. Nem é que não tenha profundidade, mas as aguas cristalinas dispensam a necessidade da cautela, e autorizam o pulo.
Eu não sou difícil de ler, não tem nada por trás, nada pra supor. O que tem é muita coisa posta e isso é mais do mesmo do que tem no fundo, mas já da pra ver da superfície, só mergulha quem quer.
Sem entrelinhas. Sou só o que sou quando quero alguém.
O rádio que meu avô me deu de presente do meu primeiro casamento, canta no fundo:
"Se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que só dizem sim."
Eu digo sim, sempre.
Apenas até o dia que não digo mais nada, e então: não.
E o sempre acaba.
Eu nem tiro nossas xicaras da mesa, nem troco a roupa de cama depois que você sai, nem corro pra tirar a toalha do banheiro. Não é um plano. Não tem nada por trás.
É só que eu sou um oceano raso, cujas águas cristalinas, dispensam a cautela e autorizam o pulo.
Você pode pular.
Eu autorizo
Mas não aconselho
Por que no fundo, ainda sou um oceano.
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