Afronta

Ninguém que se interessa por autoconhecimento, autonomia, independência emocional gosta da ideia de depender da leitura do outro. De ter que caber na caixinha que o outro oferta por mais ingênua e despretensiosa que esta seja. Eu detesto. Mas detesto muito mais ser confinada a uma caixinha onde nem consigo caber .
Eu luto com a caixa da percepção de mim antes do outro desde que me entendo por gente. Fui forjada em cacos de gracejos e habilidades infantis e com uma ausência da convicção de ser. Retirei de campo todo resquício que gerou desaprovação ao meu comportamento ou até mesmo afinidades antes de ser capaz de me perguntar se era um direito meu ou se era "ok" cultivar aquilo ou não.
Hoje quando eu vejo crianças brincando com um brinquedo avançado demais pra idade eu me reconheço absolutamente brincando de ser sem saber como segurava as peças e sem tempo de aprender no meu ritmo. Talvez não fosse tempo que bastasse, fosse orientação profissional mesmo. Algumas crianças por mais inteligentes que sejam vem sem algumas habilidades ou demoram mais um pouco pra desenvolver e era pra ser tudo bem. Eu vim sem a habilidade de afrontar. De desafiar. De me perceber como agente importante da disputa, e venho sendo empurrada pra essa caixa sem conseguir caber. Eu pratiquei o recuo o tempo todo. Como quando o jogo de peças de encaixar tem várias formas e a criança pega errado e todos dizem: não é essa! Naquela festa mesmo e você solta rápido pra tentar acertar e ouvir aquela vibração quando encaixa certinho. Foi isso o tempo todo.
Eu não tive lealdade aos meus interesses, eu soltei tudo que peguei, que me instigou, que me atraiu pela cor, som, pessoa, ideologia que não teve aprovação. Eu não escondi no bolso pra olhar mais tarde longe dos olhares de todos como fui acusada diversas vezes nas ditas conversas abertas de casa durante a adolescência e início da vida adulta, onde eu já estava certamente errada e agora era acertar dizer algo em minha defesa, não tinha escondido ou mentido eu tinha recuado, se o grande erro foi ter tido interesse então que acertem contas com o fazedor de pessoas, que nunca colocaria num coração um desejo que não pudesse ser realizado. Eu não tinha pecado, tinha ausência de acerto para as regras de um sistema. E um funcionamento não ser justo e amoroso não é o fim do mundo. É só ser algo dito, admitido, aceito, comunicado e acordado entre adultos capazes de compreender o sistema. Não existe justiça e amor num sistema de crenças, família, religião ou seja o que for, onde não acertar tem o mesmo valor punitivo de errar. Isso é pra o positivismo, a ciência, o pragmatismo. Vida é outra coisa. Gente não se coisifica, criança não é equação. Coletividade não é conjunto numérico. As regras não foram justas nem claras.
Meu grande medo de criança era ser afrontosa, eu lembro de mim, de cheiros específicos quando lembro desse grande medo. Eu achava que uma tragédia imensa iria acontecer com a humanidade se eu explorasse o terreno além do recuo. E eu não entendia porque mesmo recuando e rejeitando algumas coisas, interesses, "tipos de pessoas" sempre voltavam.
Hoje aos 27 eu descobri o porquê, era porque eu era gente. Não era uma projeção, um espelho, tinha dentro daquele oco um espaço pra algo chamado personalidade que cedo ou tarde iria se manifestar e como água derrubar as barreiras que encontrasse pra se estabelecer. E ela tinha lá seu modo de ver cada elemento da vida, seus interesses, suas crenças, suas formas... e isso tudo sempre retornava após o recuo. Eu fiquei esses anos todos empurrando as peças do joguinho que não encaixavam no buraco aguardando o brado da aprovação e há muito tempo ele não vêm. Encaixei peças que não cabiam em mim porque todos indicavam que era a peça certa embora infelizmente eu não tenha percebido sozinha.
Eu fui acusada de coisas muito duras pra quem estava nesse contexto desde criança e eu acreditei em todas elas.
Eu não soube esperar minha persona, eu nem sabia que tinha algo a esperar que pudesse dar fim ao sofrimento das peças encaixadas a força a não ser que eu tirasse minha própria vida.
Eu acreditei que eu era mentirosa, orgulhosa, furtiva, sinuosa, que tendia a mentira, a esconder, a enganar a vida dupla.
Eu cheguei muito perto muitas vezes de destruir esse corpo porque já que era oco qualquer tombo traria fim a agonia.
Matar, forjar, revestir essa personalidade então nem se fala. Eu troquei todo tesouro que um humano pode crer ter em cada fase da vida pra que eu tivesse ligação, identificação, algum encaixe com as peças do meu conjunto social e familiar que fraturei meu tabuleiro e ainda assim, com todo o esforço e desperdício de uma vida, agora em 2019 fui de novo acusada de afronta.
De novo.
Só que agora basta.
A única coisa que eu gostaria de ter feito da minha vida é afrontar.
Gostaria de poder ter me defendido quando criança.
De ter podido dizer: calma com o rolo compressor não percebe que ela não está se adaptando ao jogo? É possível trocar, esperar um pouco, dá uns treinos.
Ninguém se levantou em defesa. Dentro de uma comunidade com tantas regras elaboradas e punições sérias. Jogando com morte e eternidade, deuses, verdade se intrigas universais foi demasiado cruel.
Num sistema onde uma escolha de criança facilmente induzida pelo manejo afetivo familiar pode ter o mesmo peso que um pacto de adulto e as mesmas consequências foi especialmente irresponsável, desumano e injusto.
Não admitir isso e acusar o uso da faculdade da vida e do livre arbítrio de afronta, a essa altura, quando todos já tiveram tempo e maturidade de reconhecer os próprios erros e tentar corrigir o que fosse possível de afronta, não.
Minha criança que todos vigiaram mas ninguém cuidou é cria minha agora. Eu deixei de odiar como a raiz de minha solidão no mundo e assumi.
Agora não tem perdão, isso não se faz. Não se usa de poder, coerção e privação afetiva pra manejar uma pessoa do nascimento a vida adulta pra convencer ela de que ela só comete erros, que ela é furtiva, mentirosa, desleal, dúbia, que não é de confiança mesmo tendo só porque ela não se adequa a um ínfimo sistema e depois se coloca como vítima de desafio e afronta e fica tudo bem.
Eu vou defender minha criança
E ninguém nunca mais dirá essa a coisas a ela e ela terá de acreditar
só porque não conhece outro tipo de afeto.
Porque acreditou nas pessoas erradas
Pôr que não tinha experiência de vida pra se defender das más, péssimas intenções alheias ao roubar o botão da escolha. Pra se proteger do aliciamento e assédio através de manipulação pra lutar numa guerra psicológica de almas que não querem se enxergar, se assumir, se curar e inventam regras absurdas pra aprisionar outras.
Eu estou exausta de empurrar.
Quem tentar dizer a minha criança que ela é ruim de novo vai ser empurrado.
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