Conversa com o espelho

Adultecer é um trabalho infernal.
E não tem quase nada ou ninguém ao seu redor que vá te incentivar a fazer isso. A maioria dos conselhos que você vai encontrar é para que você continue se comportando como uma criança, quanto mais velha você for, mas bem fundamentado e elaborado será o argumento para isso. Talvez tenha até referências bibliográficas. E as pessoas inclusive costuma ter um gozo sinistro de comparar idosos e crianças e isso me dá calafrios.
Mas o que eu queria dizer era que pouca coisa, ou muito provavelmente numa embalagem que você aprendeu a desacreditar, irá te incentivar a crescer.
A entender que você vai errar sim, com coisas e pessoas e a não fugir disso. A entender que quando errar pedir desculpas não vai resolver na maioria das vezes, mostrar arrependimento também não, ficar mal também não mas nao fazer nada disso é falta de respeito com os sentimentos dos outros.
Que talvez nada resolva, talvez seja só pra ficar ali e esperar ser perdoado, uns dias mais que outros. Ou entender que está na hora de ir embora e deixar que a pessoa lide com a dor que você ajudou a causar e que isso talvez leve anos pra ela, mas que quem vai decidir se é melhor você ir ou ficar vai ser a pessoa e não você, não partir quando a pessoa que você magoou precisa que você fique pra ajudar a consertar as coisas, pra pagar o prejuízo, limpar a bagunça, isso é pior do que qualquer coisa que você tenha feito. E que existe sim a possibilidade que ainda sendo horrível, você escolha fazer isso. Entender que muito provavelmente o que vai resolver, é resolver mesmo. Mudar e não fazer de novo, com quem for achando no caminho se não der mais tempo de compensar aquela mesma pessoa do erro original. E nesse processo perceber que talvez você seja um trauma. O relacionamento tóxico de alguém. O amigo traiçoeiro de alguma narrativa. A pessoa falsa, hipócrita que você costuma abrir a boca com muita convicção e dizer que não é, e desse ponto começar a aprender que se identificar e definir são sempre mecanismos temporários, quer a gente esteja consciente disso quer não. Por que os anos vêm e mudam todas as perguntas que você tinha descoberto as respostas e elas quase nao servem de nada além de representarem um degrau distante que você quase não consegue ver mais quando olha sua trajetória.
Adultecer também envolve aprender a reclamar e dar afeto, e para algumas narrativas isso vai ser a maior dificuldade da vida. Entender que carícia é comida. Que tem uma idade que começa a ficar irresponsável fazer de conta que não precisa, tentar se alimentar com carícias sintéticas como sexo aleatório e coleguismos quase como quem tenta viver trocando refeições completas por petiscos, ou ainda tentar comprar afeto com dinheiro ou lealdade. Envolve compreender que a mais essencial das carícias é saber que você é amado por só por existir independente do que você faça, o tal amor incondicional que muitos negam mas parece todos buscam. Aprender que quem tem que garantir essa aí é você, que é você que tem que ser pra você suficiente e bastante a ponto de não precisar sentir insegurança e medo. Só você e não adianta inventar deus pra te infantilizar, te carregar no colo, te amar, atribuir seus defeitos e qualidades a ele e dizer que é um amor recíproco. Pra fazer atos heroicos e grandiosos por você e você dever sua vida a ele. Não adianta esperar que seus pais e avós sacrifiquem o curso natural dos seus dias para resolver e fazer coisas por você porque "amor é isso". Não adianta inventar família. Inventar casamento. Esperar declarações de amor perfeitas, ou inventar amor onde só existem declarações. Não adianta inventar que vai existir alguém que vai te completar e sumir com esse vazio de não se conhecer, não querer se enxergar e não se amar. Nada nem ninguém vai preencher seu lugar em afetuar-se por simplesmente existir, mas muita gente vai te afetar e esperar afeto de você nesse caminho, e você nem sempre se sentirá capaz de dar, a tempo. Que e sua a responsabilidade de amar todo o pacote. Suas necessidades mais constrangedoras, suas habilidades aparentemente inúteis assim como tudo aquilo no qual você não é bom. Todas as partes moles e tortas. Você com todas as coisas horríveis que já fez e reconhecendo as belas, incluindo o que você fez com seu corpo, que com toda certeza do mundo, é muito belo, principalmente se for (e nao apesar de ser) mole e torto. E adultecer é parar de brincar de negar essa beleza, negar que você gosta do que vê e tentar odiá-lo. É não participar mais do pacto social de se achar feio e insuficiente. Despejar essa responsabilidade de se amar incondicionalmente nas pessoas, como fazem as crianças com os seus cuidadores só vai produzir mais mágoas e mesmo assim, você vai fazer isso várias vezes e vão fazer com você também.
Quase tudo ao seu redor vai te induzir a fugir de tudo isso, seja por deixar que as defesas infantis se aprimorem com o tempo, usando sempre projeção, negação e vitimização para não se responsabilizar pelo seu pisar nas interações, seja por evitar se relacionar ou aprofundar nos relacionamentos, seja por se entregar ao invisível e esperar que ele tudo explique, tudo resolva, que puna e recompense. Seja por cinicamente tratar o romantismo como um forma válida e justa de interagir com pessoas, naturalizar o utilitarismo nas relações, nao escutar o outro, viver no automático ou seja por se entorpecer usando entretenimento, substâncias, ciência ou religião, que são coisas muito parecidas por sinal e adultecer é muito sobre estar pronto pra admitir isso.
E por fim entender que quase tudo que vende ao seu redor serve pra te incentivar a não adultecer, inclusive a super valorização da infância. Seus filmes, suas séries, seus deuses, seu conceito de família, seus livros, sua filosofia, sua ideia de amor, suas músicas, seu academicismo, sua carreira são quase sempre soube não se responsabilizar por.
Até a classe, a raça, o gênero de alguns carregam uma hierarquia do direito de não se responsabilizar.
Adultecer é remar contra a maré.
E no dia que você decidir adultecer, você provavelmente vai precisar superar tudo isso, se desconhecer, se experimentar, se desvelar, se decompor, dizer algo com toda a convicção e voltar atrás e esse processo é de tomada de consciência, é morno, é meio apático, nada glamoroso.
Não é bem como cruzar a linha de chegada e subir no pódio. É mais algo como chegar em casa e tirar os sapatos. Uma sensação incrível, mas ninguém vai te dar um prêmio por isso.
Qual a recompensa por adultecer? Nenhuma. É uma escolha. E "cada escolha uma renúncia, isso é a vida."
Se você não a fizer a escolha de adultecer estará escolhendo outra coisa, e é isso que você talvez queira saber se é a coisa que quer. Não é exatamente sobre seguir o fluxo e permanecer criança, mas se quer mesmo renunciar o direito de ser um adulto.
Eu hoje registro todas essas percepções e aguardo a mudança das perguntas e que se torne tudo obsoleto.
Mas até onde caminho, com percepção, afinal não é sobre quantos anos se vive mas sobre há quanto tempo se tem consciência de que vive, percebo que não é sobre entender, já dizia Lispector, "viver ultrapassa qualquer entendimento", mas é sobre criar estratégias de ficar pra ver o que tem depois do agora.

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